A MÁSCARA
- Gilmar Zampieri

- 13 de ago. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 16 de ago. de 2020
O inimaginável aconteceu. O imprevisível e nunca sonhado nem nos piores dos pesadelos, tornou-se cotidiano e rotina. O que a ficção jamais ousou pensar, agora, está estampada no rosto de todos os viventes. Qual estilista de moda fantasiou a possibilidade de, um dia, a humanidade inteira poder vir a usar máscara, normalmente, como se usa camisa ou calça? E, contudo, cá estamos nós tendo que usar essa focinheira maldita e desconfortável.
O vírus e a máscara são, hoje, mais populares do que Jesus Cristo. Apesar dos negacionistas, em qualquer lugar do mundo esses dois entes estão presentes nas casas, nas conversas, nos silêncios e na cara. Sobretudo, na cara!
O que a máscara faz pensar? Quais são seus múltiplos sentidos? O que o seu uso ou sua recusa de usar revelam?
Arrisco um decálogo:
1- Sentido natural. Parafraseando Freud que dizia que, às vezes, um charuto é só um charuto, a máscara, às vezes, é só uma máscara, uma peça de proteção facial no exercício de uma profissão ou de uma atividade. É o caso da máscara do trabalhador no manejo de agrotóxicos que evita intoxicação e do esgrimidor e do apicultor, que os protegem da espada e do ferrão. Em boa medida, a máscara, tradicionalmente, está também associada aos médicos em geral, máxime aos dentistas. Nesse primeiro nível a máscara é só uma máscara e tem uma função natural de utilidade protetiva e de segurança.
2- Sentido literal: A máscara é um adereço para cobrir o rosto.
3- Sentido cênico. A máscara, às vezes, é muito mais do que um instrumento de proteção ou uma peça útil, ou um adereço para cobrir o rosto. Ela é um símbolo de uma ausência que se quer representar. É o caso de seu uso no teatro. Nesse campo a máscara se presta para marcar o personagem e jogar o jogo da representação que o papel do ator quer exprimir. Os super-heróis do cinema são a atualização do poder da máscara para migrar de um personagem a outro encarnando o poder mágico ou trágico adquirido nessa migração.
4- Sentido psicológico. Há, ainda, o sentido figurado e, nesse aspecto, a máscara deixa de ser um objeto e passa a significar, interiormente, o seu efeito externo, qual seja, fingir, disfarçar, simular e ocultar a identidade aparentando o que não se é, assumindo facetas e identidades postiças. Dura é a nudez da verdade e a máscara, às vezes, é essa segunda pele que nos salva de nós mesmos, pois se nos expuséssemos seríamos insuportáveis...! Por outro lado, a máscara no sentido psicológico, pode, ainda, fazer o jogo de representação “escondendo“ do outro o seu lado sombrio, egoísta e interesseiro e se apresentando em seu lado luminoso, solidário e desinteressado para adquirir capital no jogo da aceitação e reconhecimento. Em outras palavras, representar um papel que embaralhe o ser e o parecer ser no jogo sutil das motivações e intenções no campo dos papéis, das aceitações e valorações sociais e morais.
5- Sentido religioso. Na perspectiva religiosa, sobretudo em povos originários, a máscara compõe a cena em rituais de passagem e em cerimônias de invocação e incorporação de energias espirituais de animais ou totens protetores da comunidade. Ela tem o poder da mediação entre o mundo profano e o sagrado.
6- Sentido filosófico. Desde os gregos é comum a distinção entre ser e parecer ser, entre essência e aparência. Mais ainda, entre verdade e falsidade e autenticidade e inautenticidade. A verdade, a essência e a autenticidade, contudo, convivem com camadas e máscaras que as encobrem e, por isso, a constante e permanente vigilância pelo desvelamento do ser. No sentido filosófico a máscara é a caverna escura, onde o filósofo luta para se livrar e desvencilhar no caminho penoso do conhecimento e da ação. A máscara é o que parece ser, mas não é, ela representa o sofista, um mentiroso que se passa por filósofo.
7- Sentido ético. A máscara pode, ainda, ser sinônimo de hipocrisia que, de mil maneiras, faz o mal com aparência de bem, se veste de ovelha para esconder o lobo e melhor devorar os cordeirinhos. Mas a máscara e seu uso é, também, em tempos de pandemia, o sinal externo do respeito e amor ao próximo e quem não a usa bom sujeito não é.
8- Sentido político. Político algum, sobretudo de direita, se elegeria, num regime democrático, se não soubesse lidar com a mentira, disfarce, falsa promessa e, por que não, com o jeitinho de fazer o jogo dos empresários e banqueiros, os verdadeiros donos do poder, mas que se escondem atrás do palco e a todos manipulam e compram para que seus interesses, velados e mascarados, nunca sejam, totalmente, revelados. É o que conhecemos por “mascarar a realidade”!
9- Sentido ideológico. Há, ainda, um sentido ideológico da máscara, sobretudo em quem se nega a usar, mesmo sabendo que é uma proteção e escudo fundamental para bloquear o coronavírus. O que os valentões têm na cabeça para se acharem no direito de desafiar a doença colocando em risco os outros? Uns não têm nada. Outros são narcisistas demais da conta para prestar contas ao outro. Outros, ainda, são maquiavélicos e psicopatas. Outros se negam a usar um símbolo do politicamente correto, contestadores que são. Além dos anticomunistas e negacionistas que enxergam na máscara um símbolo do estatismo invasor da propriedade do rosto. Em plena pandemia desconfie de um rosto descoberto em lugares públicos, boa gente, provavelmente, não é!
10- Sentido lúdico. Máscara é, por fim, sinal de bom humor, de fantasia, de brincadeira, de profanação dos sistemas opressores e subversão lúdica da sociedade estratificada. O carnaval, os foliões, e a máscara como seu símbolo maior, permite pensar na abolição das diferenças fazendo que os últimos saiam da invisibilidade e do anonimato para o centro do palco da diversão onde o “faz de conta“ dá um alento para a sofrida vida de quem vive na dor, mas que, por um momento, ocupa o palco e faz a festa, assumindo um papel que não é o seu, mas que, nesse momento, é todo e somente seu.
A máscara pode até ser mais popular do que Jesus Cristo, mas ela passará e Jesus, passarinho! Para os os que não leram Mário Quintana, sugiro!





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