Resumo: Este trabalho não defende uma tese interpretativa e também não pretende analisar qual tem sido a recepção, na Igreja e na sociedade, da Carta Encíclica Fratelli Tutti do Papa Francisco. Intenta-se algo mais modesto, a saber, oferecer uma introdução geral à Encíclica, com pretensão de ser um Guia de Leitura que facilite sua compreensão e absorção. Para tanto, seguirá a estrutura da Encíclica, focando-se naquilo que parece ser o argumento principal de cada um dos seus oito capítulos. Se alguma colaboração esse texto pode ter, esta será na forma e no estilo de apresentar o conteúdo e as ideias do Papa Francisco.
Palavras chaves: Fraternidade. Amizade social. Paz. Mundo fechado. Mundo aberto. Diálogo.
Resumen: Este trabajo no sustenta una tesis interpretativa y tampoco pretende analizar cuál ha sido la recepción, en la Igreja y em la sociedade, de la Carta Encíclica Fratelli Tutti del Papa Francisco. La intención es algo más modesto, a saber, ofrecer una introducción general a la Encíclica, con la intención de ser una guía de lectura que facilite su comprensión y absorción. Para ello, seguirá la estructura de la Encíclica, centrándose en lo que parece ser el argumento principal de cada uno de sus ocho capítulos. Si alguna colaboración puede tener este texto, será en la forma y estilo de presentar el contenido y las ideas del Papa Francisco.
Palabras clave: Fraternidad. Amistad social. Paz. Mundo cerrado. Mundo abierto. Diálogo.
INTRODUÇÃO
O Papa Francisco é luz na escuridão e por onde passa deixa um rastro de esperança. Esperança poderia ser seu nome, mas ele assumiu o nome de Francisco, o que dá no mesmo, pois Francisco é mais do que um nome, é um programa de pontificado e está sendo cumprido com rigor e coerência em seus três pontos principais: a) uma Igreja pobre e para os pobres; b) um claro compromisso com o meio ambiente; 3) um desejo de fraternidade, justiça e paz.
Da Igreja, o Papa Francisco tratou na exortação Evangelli Gaudium. Do meio ambiente se debruçou na encíclica Laudato si’. Agora, com a Fratelli Tutti, o tema é a fraternidade e a paz. A trilogia se fecha. A unidade transcendental encontra-se no Deus da criação, em Jesus, nos temas abordados e todos interconectados e, sobretudo, na figura pessoal do Papa que encarnou, de forma exemplar, o espírito e a mística franciscana.
A encíclica Fratelli Tutti é para ser lida, meditada e discutida. Não dá para ser católico e desconhecer o Ensino Social da Igreja e essa Encíclica é, ao mesmo tempo, uma síntese e uma introdução a esse ensinamento.
Há boas intervenções e interpretações pontuais da Encíclica e o meu intuito não é fazer um corte e aprofundar um ou outro ponto, mas pretendo oferecer ao leitor um guia de leitura da Fratelli Tutti. Para tanto, faço, num primeiro momento, uma introdução geral em cinco pontos e, posteriormente, analisarei a Encíclica passo a passo, apresentando o que me parece ser a tese central de cada um dos oito capítulos.
1. O título e tema. Em todas as Encíclicas as primeiras palavras do texto figuram como título e por isso são muito bem pensadas. O título é como uma fotografia ou o nome de alguém, lhe dá identidade. O título é, ao mesmo tempo, uma síntese e uma chave de leitura. No caso da Encíclica Fratelli Tutti, assim como foi na Laudato Si’, o título é de inspiração franciscana. Se a expressão Laudato Si’, louvado sejas, teve origem no Cântico das Criaturas, Fratelli Tutti tem sua origem textual nas Admoetações, um escrito de São Francisco, onde se lê: “Irmãos todos, prestemos atenção ao Bom Pastor que, para salvar suas ovelhas, suportou a paixão da cruz” (FF, VI Adm). Fratelli Tutti, portanto, soa algo como: “Somos todos irmãos”. O subtítulo da Encíclica amplia e, ao mesmo tempo, esclarece o título, introduzindo o tema de fundo da Encíclica, a saber, a Fraternidade e a Amizade Social. O alcance do título e a proposta temática são amplos o suficiente para indicar que filosofia, teologia, sociologia, economia e política serão os campos de movimentação da abordagem da Encíclica. Afinal, uma Encíclica social, tanto para o diagnóstico da realidade, quanto para um bom julgamento e indicações de pistas de ação, só pode ser lúcida e eficaz se for interdisciplinar, mobilizando tanto o intelecto quanto o sentimento, em vista da práxis humanizadora e civilizatória. É o caso da Fratelli Tutti, que nos convoca a superarmos o espírito do “eu” para entrarmos na dinâmica do “nós” e do “comum”.
2. Objetivo. Enquanto o propósito da encíclica Laudato Si’ foi contribuir para o debate em torno do cuidado da casa comum e dos pobres, superando a crise socioambiental, explicitando a colaboração que a fé pode oferecer para “cuidar da natureza e dos irmãos e irmãs mais frágeis” (LS 64), o propósito da Fratelli Tutti é expressamente manifesto pelo Papa quando diz que a Encíclica não quer “resumir a doutrina sobre o amor fraterno”, mas se concentrar na “dimensão universal” e naquilo que o amor tem de “abertura a todos” na construção da fraternidade e a amizade social. Para tanto, diz o Papa: “entrego esta Encíclica social como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras” (FT 6). Não se limitar a palavras supõe passar da cabeça ao coração e do coração a ação.
3. Os inspiradores. Francisco de Assis foi o inspirador principal da Laudato Si’, por tudo o que ele representa à causa ecológica e à causa dos pobres. Papa Francisco manifestou essa inspiração, de uma forma acertada, quando diz que “Francisco é o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade” (LS 10). Outra figura exemplar e inspiradora da Laudato Si’ foi o Patriarca Bartolomeu I, da Igreja Ortodoxa, exemplar defensor das causas ecológicas. Agora, na Fratelli Tutti, a inspiração do Papa continua sendo Francisco de Assis, afinal, o que amava a natureza e os animais, amava com igual intensidade os humanos e a todos tratava como irmãos. “Esse Santo do amor fraterno, da simplicidade e da alegria, que me inspirou a escrever a Encíclica Laudato Si’, volta a inspirar-me para dedicar esta nova Encíclica à Fraternidade e à amizade social” (FT 2). Contudo, a novidade recai sobre uma figura pouco conhecida do ocidente cristão, que é o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb. A inspiração é, pois, dupla, o que mantem a coerência com a já dupla inspiração da Laudato Si’, como referimos. Além dessa dupla inspiração, o Papa faz uma menção especial a três figuras emblemáticas, não católicas, que orbitam num círculo de grandeza muito próximo de Francisco de Assis e de Jesus Cristo: Martin Luther King, Desmond Tutu, Mahatma Mohandas Gandhi.
4. Os destinatários. A Fratelli Tutti tem sido chamada de “Encíclica laica”. Parece exagero, mas a qualificação não deixa de ser verdadeira. De fato, os interlocutores e destinatários, não são somente os cristãos católicos e crentes de outras religiões. Aliás, isso tem sido uma prática recorrente das Encíclicas que não tratam especificamente da vida interna e da evangelização da Igreja, mas tratam de temas e problemas de alcance e interesse universais. João XXIII abriu caminhos nesse aspecto e, na Pacem in Terris (1963), não só se dirige aos bispos, clérigos e fiéis católicos, mas também “a todas as pessoas de boa vontade”. O Concílio Vaticano II consagra essa prática na Constituição Pastoral Gaudium et Spes, que trata das esperanças e angústias do homem em tempos modernos, quando diz que “o Concílio Vaticano II não mais hesita em dirigir a palavra somente aos filhos da igreja e a todos os que invocam o nome de Cristo, mas a todos os homens” (GS, 202). O Papa Francisco segue as pegadas de João XXXIII e do Concílio Vaticano II e, já na Laudato Si’, tinha se dirigido a todos os homens de boa vontade quando diz: “nesta Encíclica, pretendo especialmente entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum”(LS, 3). Ele assim se expressou pois na Evangelli Gaudium tinha se dirigido especificamente aos fiéis católicos. Agora, na Fratelli Tutti, novamente, o Papa Francisco reitera o seu desejo de se dirigir para além dos membros internos da Igreja. “Embora a tenha escrito a partir das minhas convicções cristãs, que me animam e nutrem, procurei fazê-lo de tal maneira que a reflexão se abra ao diálogo com todas as pessoas de boa vontade” (FT, 6).
5. Método e estrutura. O Papa é latinoamericano e aqui a teologia e a organização pastoral têm consagrado um método que tem se mostrado crítico, eficaz e criativo. Trata-se do método ver, julgar e agir. Não é só ver, porque, então, se reduziria à sociologia. Não é só julgar, pois, decairia na doutrina, pura e simples. Não é só agir, senão seria experimentalismo cego. É ver, julgar e agir. O ver processa uma análise crítica da realidade. O julgar ilumina a realidade a partir da Bíblia, do magistério e da tradição teológica, abrindo linhas de ação transformadoras da realidade. Esse é o método da Encíclica que é composta de uma introdução, oito capítulos e duas orações finais. O primeiro capítulo é um ver a realidade que impede a fraternidade. O segundo é um resgate e interpretação da parábola do bom samaritano. Do capítulo III ao VIII, o método torna-se circular, em que o ver, julgar e agir perpassam os vários temas já consagrados no Ensino Social da Igreja, apontando sempre para a superação do mundo fechado e abrindo caminhos de diálogo para a construção da fraternidade, amizade e paz, sem os quais a dignidade humana não passa de um conceito abstrato.
CAPÍTULO I: AS SOMBRAS DE UM MUNDO FECHADO
O Papa Francisco abriu a Encíclica Laudato Si’, no primeiro capítulo, falando sobre o que “está acontecendo com a casa comum” e, na Fratelli Tutti, na mesma lógica do método ver, julgar e agir, ele abre o primeiro capítulo para fazer uma resenha dos principais problemas ou “tendências do mundo atual que dificultam o desenvolvimento da fraternidade universal” (FT 9). O método se mantem. O Papa faz um diagnóstico apontando o que lhe parece ser as “sombras de um mundo fechado”, com dificuldade para sair do “Eu” e se abrir em diálogo para o “nós” e o “bem comum”, para a “fraternidade universal”.
A realidade é analisada em cinco pontos.
1. Sinais de regressão e o fim da consciência histórica. Depois de algum tempo em que o mundo pareceria ter aprendido com as “guerras e os fracassos” e caminhado para um tempo de paz e integração, agora, o que se vê são sinais de regressão. O Papa aponta alguns sinais: a) retorno de conflitos que se pensava serem superados; b) ressurgimento de nacionalismos fechados e agressivos; c) ideologias populistas neoliberais que promovem discursos de egoísmo e perda de direitos sociais; d) globalização dos mercados que nos tornam vizinhos, mas não irmãos, em que os mais fortes impõe seu modo de ser, submetendo a política à economia para além de todos as fronteiras, causando desagregação por todos os lados; e) perda da consciência histórica. Respiramos ares de perda do sentido de pertença, de herança, de tradição, de enraizamento que conduz, sobretudo os jovens, a uma postura de começar tudo do zero, descontruindo por desconstruir, mesmo que a desconstrução seja de valores e sistemas de vida consagrados e que, se desprezados, levam ao vazio e a uma liberdade abstrata e facilmente manipulada. A perda da consciência histórica, geralmente, vem acompanhada da regressão da capacidade de pensar criticamente e pela alienação da própria consciência, em que as palavras “justiça”, “democracia”, “liberdade” são sequestradas para justificar qualquer ação, mesmo com sentido e fins contrários ao que verdadeiramente essas palavras deveriam carregar (FT 10-13). A perda consciência histórica resulta num presentismo perigoso, sem passado e sem perspectivas de futuro.
2. Política sem projeto para todos, descarte, direitos humanos pela metade e medo. O segundo ponto aponta para quatro aspectos que dificultam a fraternidade social. a) O primeiro diz respeito a uma tendência de políticas sem projeto comum, privilegiando projetos de interesse privados, que se valem de táticas de criar desconfiança e inimizades, envenenando assim o tecido social, criando um clima de todos contra todos onde “vencer é sinônimo de destruir”, beneficiando os mais fortes que dividem para governar. Diz o Papa: “Dessa forma, a política deixou de ser um debate saudável sobre projetos a longo prazo para o desenvolvimento de todos e o bem comum, limitando-se a receitas efêmeras de marketing cujo recurso mais eficaz está na destruição do outro” (FT 15). Nesta cultura parece que o cuidado com o que é comum e com a casa comum são, hoje, nada mais do que delírios e as vozes que se levantam para defender essas bandeiras são, no mais das vezes, ridicularizadas ou banidas. b) O segundo aspecto diz respeito à cultura do descarte. A cultura do descarte se manifesta em duas direções: i) de coisas e alimentos; ii) de humanos. O descarte é uma cultura dentro do sistema capitalista que privilegia e organiza a sociedade para alguns e faz pouco caso a outros. O Papa acusa, nesse aspecto, a obsessão por reduzir custos trabalhistas, retirando direitos conquistados e privilegiando o capital em detrimento dos postos de trabalho, com o consequente desemprego em massa “alargando as fronteiras da pobreza”. Além disso o descarte se manifesta no racismo, no aborto e no desprezo aos idosos. Em relação ao descarte de coisas e alimentos, é uma pena que o Papa não esteja atento ao drama dos animais sem bem estar na criação e mortos aos bilhões todos os anos. Tanto sofrimento animal para o nosso prazer gastronômico não seria uma absurdo e injustificado descarte? c) O terceiro aspecto trata das sombras existentes em torno dos direitos humanos. Parece que os direitos humanos só valem para os “humanos direitos” e, supostamente, há humanos “tortos” que não merecem ser tratados igualmente e são relegados ao esquecimento ou tratados como se fossem humanos pela metade. Diz o Papa: “persistem hoje, no mundo, inúmeras formas de injustiças, alimentadas por visões antropológicas redutivas e por um modelo econômico fundado no lucro, que não hesita em explorar, descartar e até matar o homem. Enquanto uma parte da humanidade vive na opulência, outra parte vê sua dignidade não reconhecida, desprezada ou espezinhada, e os seus direitos fundamentais ignorados ou violados” (FT 22). Afora essa dimensão mais ampla, há ainda o caso dramático da mulher e da escravidão. Sobre as mulheres, por exemplo, o Papa diz: “em todo mundo ainda está longe refletir com clareza que as mulheres têm exatamente a mesma dignidade e idênticos direitos que os homens” (FT 23). d) Um quarto aspecto diz respeito ao constante estado de guerra que ainda se manifesta e que o Papa tem identificado como “terceira guerra mundial em pedaços”. O espírito de unidade é mais difícil de manter e, facilmente, a cultura contemporânea se deixa seduzir pela negação do “outro” e do “diferente”, tratando-o não como alguém de direitos iguais, mas de potencial inimigo a ser combatido e vencido. O Papa tem insistido na ideia de derrubar muros que dividem e arquitetar pontes que nos unem. E alerta: “quem levanta um muro, quem constrói um muro, acabará escravo dentro dos muros que construiu, sem horizontes. Porque lhe falta a alteridade” (FT 27).
3. A globalização, o progresso sem um rumo comum e a pandemia. O Papa não desconhece o progresso e os avanços da tecnologia na área da medicina, indústria e o bem-estar dela decorrente. Contudo, lamenta a falta de sentido ético do progresso e da globalização do mercado. Neste particular chama atenção para a regressão do senso de responsabilidade e pelo descaso aos valores espirituais que, em não acompanhando o progresso, podem levar a “frustração, solidão e desespero”. Quando o progresso não é acompanhado de desenvolvimento humano integral, o que se pode dizer é que é um progresso sem rumo humano. Na medida que isso ocorre o sonho de “construirmos juntos a justiça e a paz parece uma utopia de outros tempos” (FT 30). O que o Papa sinaliza nesse ponto é que há uma cisão entre interesses privados e rumos comuns da humanidade e isso causa um descompasso entre bem-estar de alguns e desigualdades insuportáveis de outros. Papa Francisco insiste em dizer que é preciso superar a cultura do isolamento e confronto, liberando energias para uma cultura de paz e de encontro. A pandemia parece ter despertado, pelo menos por algum tempo, a consciência de que somos uma comunidade mundial que viaja no mesmo barco e que a vida e saúde do outro importa, porque “o mal de um prejudica a todos”. Além disso a pandemia nos despertou para a mentira de que o mercado possa ser a nossa garantia. Ela nos obrigou a repensar os estilos de vida, nossas relações, as organizações de nossa sociedade e, sobretudo, o sentido de nossa existência. Por algum momento ficamos mais sensíveis, solidários e até pensativos quanto a possível relação entre nosso modo de habitar o mundo como causa do vírus. Seria uma lástima se “rapidamente esquecemos as lições da história, mestra da vida”, diz o Papa. Passada a crise sanitário o que permanecerá de solidariedade para com os que sofrem e com a natureza? Se voltarmos ao consumismo desenfreado da “vida normal” e não “recuperamos a paixão compartilhada por uma comunidade de pertença e solidariedade...ficaremos à mercê da angústia e do vazio” e o “salva-se quem puder”, rapidamente, redundará em “todos contra todos” (FT 36).
4. A dignidade dos imigrantes. Se há uma voz que clama, não no deserto, mas sobre os mares, em defesa dos imigrantes, essa voz é a voz do Papa Francisco. O imigrante é o “outro” por excelência, e a relação que mantemos com ele é o teste cabal para definirmos se somos humanistas e cristãos ou se somos xenófobos, nacionalistas e egoístas. O Papa compreende que há um medo natural e instintivo que nos protege do estrangeiro, contudo, não ultrapassar o instinto é abdicar da ética e da religião. Não ultrapassar os instintos primários, fechar-se e armar-se, nos privam do encontro com o outro, que é o que nos faz verdadeiramente humanos e cristãos. É inaceitável, diz o Papa, que os cristãos partilhem da mentalidade xenófoba, e fechada em si mesma. Independentemente dos motivos que leva alguém a migrar - guerras, perseguições ou fugas de regimes autoritário ou até mesmo crise climática - o que se espera de um humanista cristão é que a hospitalidade seja uma virtude a ser alimentada para garantir “a dignidade inalienável de toda pessoa” que nos convoca para um “sentido de responsabilidade fraterna”, sem a qual passaremos atestado de incoerência entre o que professamos e o que fazemos. Os maiores inimigos da fraternidade universal, nesse aspecto, são os populismos nacionalistas e as economias ditas liberais que pensam que os pobres e imigrantes são pessoas descartáveis, um peso para as economias e não considerados “suficientemente dignos de participar da vida social como os outros” (FT 39).
5. A ilusão da comunicação. No passado se dizia que a maior solidão era aquela vivida na multidão. Pois, agora, a multidão chegou. A revolução das massas, de Ortega Y Gasset, agora se tornou real. Estamos todos conectados e virtualmente no mesmo “ambiente”, contudo, cada um protegido em sua bolha. As redes reduzem as distâncias, porém não reduzem a ignorância que parece invencível. Desaparecem as distâncias, diminui-se a privacidade e aumentou a intolerância e atitudes fechadas. A sociedade do espetáculo de que falava Guy Debord, se efetivou e nas redes “tudo se torna uma espécie de espetáculo que pode ser espiado, observado, e a vida acaba exposta a um controle constante...esvai-se o respeito pelo outro e, assim, ao mesmo tempo que o apago, ignoro e mantenho afastado, posso despudoradamente invadir até o mais recôndito de sua vida” (FT 42). Por outro lado, os meios digitais de comunicação, além de criarem dependência, promovem o isolamento e “perda progressiva de contato com a realidade concreta, dificultando o desenvolvimento de relações interpessoais” (FT 43). O essencial escapa aos meios digitais para uma verdadeira comunicação. Diz o Papa: “fazem falta gestos físicos, expressões do rosto, silêncios, linguagem corpórea e até o perfume, o tremor das mãos, o rubor, a transpiração, porque tudo isso fala e faz parte da comunicação humana” (FT 43). A comunicação digital não é, portanto, suficiente para criar pontes e unir a humanidade, até pelo contrário, faz recrudescer a verdadeira amizade e a construção do “nós”, afirmando-se cada vez mais o individualismo exacerbado e cancelador do outro. Mas, o pior nem é isso. O pior é a aceleração da agressividade despudorada. As redes liberaram o que há de pior em matéria de insultos, difamações, falsas informações, impropérios, afrontas verbais destrutivos do outro e “um desregramento tal que, se existisse no contato pessoal, acabaríamos todos por nos destruir mutuamente” (FT 44). Esse ambiente e essas atitudes fomentaram as ideologias do ódio e deram asas aos mentecaptos políticos. “Aquilo que, ainda há pouco tempo, uma pessoa não poderia dizer sem correr o risco de perder o respeito de todos, hoje pode ser pronunciado com toda grosseria, até por algumas autoridades políticas, e ficar impune” (FT 45). O Papa diz que há três recursos que a humanidade dispõe para superar a cultura do ódio, preconceito e da vida em bolhas que se tornou os meios digitais. Primeiro, a verdadeira comunicação requer a sabedoria do encontro com a realidade, sem os filtros seletivos de cancelar o que desagrada e só curtir e compartilhar o que agrada. Segundo, a sabedoria requer silêncio e escuta. Ou se supera a postura sofística de querer destruir o argumento do outro antes mesmo que ele o apresente ou então não haverá caminho para a fraternidade universal. Para isso o silêncio e a escuta acurada que leva a empatia, é o que se pode pensar de melhor em termos de sabedoria. E, por fim, é preciso se abrir à verdade que só será possível no diálogo, mas para isso é imprescindível que haja “espíritos livres e dispostos a encontros reais” (FT 50).
6. Esperança. Tudo isso poderia dar a impressão que o Papa é um pessimista, mas não é. É um realista esperançoso. “Apesar dessas sombras densas que não se devem ignorar, nas próximas páginas desejo dar voz a diversos caminhos de esperança” (FT 54). Um cristão não tem direito de ser pessimista, assim como não tem direito de ser intolerante, preconceituoso, egoísta, defensor dos poderosos, contra os pobres e a favor do mercado total. Assim é o Papa Francisco, esse raio de esperança que nos convoca a sermos audaciosos e caminharmos na esperança, apesar das sombras que persistem, teimosamente, sobre nossas cabeças.
CAPÍTULO II: O BOM SAMARITANO
Papa Francisco é um raio de luz no meio da escuridão. Mas, o Papa não se vê assim porque, para ele, a luz é Jesus que, com suas palavras e ações, ilumina a realidade sombria em que vivemos, pelo menos na perspectiva da fé. Do Evangelho de Jesus, o Papa destaca uma parábola que tem a força e brilho de um raio a iluminar a realidade, tanto para os que creem quanto aos homens e mulheres de boa vontade, mesmo os ateus. A parábola é conhecida como o Bom Samaritano. Pela riqueza de detalhes nela contida e pela interpretação que o Papa faz, é conveniente transcrevê-la integralmente, porque não é possível dizer mais e melhor do que ela mesma em seu conteúdo, estilo, cenário, circunstâncias e personagens.
“E eis que um doutor da Lei se levantou e disse para experimentá-lo: “Mestre, que farei para herdar a vida eterna?” Ele disse: “Que está escrito na Lei? Como lês”? Ele, então, respondeu: “Amarás o Senhor teu Deus, de todo teu coração, de toda a tua alma, com toda a tua força e de todo o teu entendimento; e a teu próximo como a ti mesmo”. Jesus disse: “Respondeste corretamente; faze isso e viverás“. Ele, porém, querendo se justificar, disse a Jesus: “E quem é meu próximo?” Jesus retomou: “Um homem descia de Jerusalém a Jericó, e caiu no meio de assaltantes que, após havê-lo despojado e espancado, foram-se, deixando-o semimorto. Casualmente, descia por esse caminho um sacerdote; viu-o e passou adiante. Igualmente um levita, atravessando esse lugar, viu-o e prosseguiu. Certo samaritano em viagem, porém, chegou junto dele, viu-o e moveu-se de compaixão. Aproximou-se, cuidou de suas chagas, derramando óleo e vinho, depois colocou-o em seu próprio animal, conduziu-o à hospedaria e dispensou-lhe cuidados. No dia seguinte, tirou dois denários e deu-os ao hospedeiro, dizendo: ‘Cuide dele, e o que gastares a mais, em meu regresso te pagarei’. Qual dos três, em tua opinião, foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?” Ele respondeu: “Aquele que usou de misericórdia para com ele”. Jesus então lhe disse: “Vai, e também tu, fazes o mesmo‘“(Lc 10, 26-37).