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FRATELLI TUTTI: CAMINHOS DE UM NOVO ENCONTRO

O sétimo capítulo da Fratelli Tutti trata dos caminhos que possibilitam curar as feridas, depois das pessoas, povos ou culturas passarem por processos de injustiças, violências e traições. Aqui entram em ação os arquitetos e artesões da paz que, através do perdão, sem, contudo, o esquecimento, nos lançam para o futuro com promessa de novos encontros. Esse apaixonante tema o Papa o conduz e o elabora através de quatro pontos.


Recomeçar a partir da verdade:

A cada dia somos diferentes. Depois de uma briga, de um conflito, de um processo de ruptura, mudamos mais ainda e não há como se retornar ao estágio anterior. Mas, há como recomeçar se a verdade for colocada na mesa, sem dissimulações e falsidades que ocultam a realidade. A memória penitencial que assume o passado e possibilita projetar novos futuro, necessariamente, precisa passar pela “verdade histórica dos fatos” para abrir caminhos de uma nova síntese. Esse processo requer tempo e paciência e se a ruptura ou conflito for de um grupo, povo ou cultura contra outra, é preciso que se honre a memória das vítimas e que se elabore um novo recomeço a partir da verdade, justiça e perdão. De fato, diz o Papa, a verdade não deve levar à vingança, mas antes a reconciliação e ao perdão. A violência gera violência, a morte gera morte e ódio gera ódio. A verdade dos fatos colocados à mesa e os atores envolvidos colocados face a face, com atitude e abertura de perdão, então haverá uma chance de justiça e reconciliação, mesmo sabendo das dificuldades que se apresentam no processo. As dificuldades são amenizadas se houver uma arquitetura e artesões que planejam, desejam e executam processos de paz.


Arquitetura e artesanato da paz:

Seja numa relação interpessoal, de grupo ou de um povo, ou mesmo de classes sociais no interior de uma nação, quando ocorre violências, conflitos e rupturas, deveríamos ter presente o que acontece numa família. No âmbito familiar também ocorrem discussões e, às vezes, rupturas, mas, o bem comum, o elo familiar, geralmente fala mais alto ou pelo menos possibilita um novo começo. “Em uma família, os pais, os avós, os filhos são de casa; ninguém fica excluído. Se alguém tem uma dificuldade, mesmo grave, ainda que seja por culpa dele, os outros correm em sua ajuda, apoiam-no, a sua dor é de todos...Nas famílias todos contribuem para o projeto comum...sem anular o indivíduo; pelo contrário, sustentam-no, promovem-no. Podem brigar entre si, mas há algo que não muda: este laço familiar”(FT 230). Não seria desejável que o modelo familiar fosse estendido aos adversários políticos, vizinhos e a qualquer situação social de conflito? A questão que se coloca é: como se alcançar a reconciliação e a paz e superar o que nos divide? Qual o caminho? Papa Francisco chama atenção para alguns aspectos: a) é preciso reconhecer a legitimidade de cada um e, mais do que fez ou deveria ter feito, deve-se confiar na promessa que cada um carrega consigo, pois é da promessa que nasce a esperança; b) cada uma das partes necessita se sentir em casa, com sentimento de pertença e numa atitude proativa, desde sua identidade e situação; c) o bem comum a ser buscado deve deixar para trás os desejos egoísticos de domínio, posse ou de vingança; d) a arquitetura da paz e da reconciliação requer esforços comuns em níveis diferentes, institucional e pessoal, mas com horizonte comum e com implicação de todos; e) a promoção da amizade social necessita integrar os mais vulneráveis e os últimos da sociedade, sem os quais, a pacificação sempre será superficial e de conveniência, sem o caráter de verdade e de justiça, tão caros para uma paz autêntica e duradoura.


O valor e significado do perdão e da memória:

Papa Francisco tem ciência do seu lugar de fala e dialoga com outros desde seus lugares de fala. No caso do perdão o Papa sabe que nem todos consideram o perdão como algo a ser buscado. Ele diz que alguns defendem que o conflito é da natureza das coisas e abrir mão dele seria uma forma de alienação a serviço do mais forte. Outros dizem que perdoar é fortalecer o inimigo ou o agressor. Outros dizem que reconciliação é coisa de fracos e medrosos e que perdoar seria o mesmo de esconder ou aceitar as injustiças que os poderosos praticam. O Papa Francisco não se enquadra em nenhuma das posições acima e defende a posição cristã. A questão que se coloca é como bem entender o perdão cristão sem cair na inércia e fatalismo enfraquecedor, por um lado e, por outro, não fomentar a intolerância e a violência. Diz o Papa: “Não se trata de propor um perdão renunciando aos próprios direitos diante de um poderoso corrupto, um criminoso ou alguém que degrada a nossa dignidade. Somos chamados amar a todos, sem exceção, mas amar um opressor não significa consentir que continue a oprimir, nem levá-lo a pensar que é aceitável o que fez. Ao contrário, amá-lo corretamente é procurar de várias maneiras, que deixe de oprimir, tirar-lhe o poder que não sabe usar e que o desfigura como ser humano. Perdoar não significa permitir que continuem a pisotear a própria dignidade e a do outro ou continuar que um criminoso continue a fazer o mal”(FT 241). Mas, então, o que seria o perdão? O perdão não anula a justiça, até pelo contrário, a reclama. Contudo a justiça não pode ser feita por vingança ou por ódio. A justiça feita e a alma do injustiçado e violentado pacificadas, sem o desejo de vingança, eis o espírito de perdão possível e redentor. Perdoar, contudo, não é esquecer. Nem Deus esquece e nem nos pede para que esqueçamos o mal que os outros nos cometem. Deus perdoa e pede que também perdoemos, mas esquecer jamais. A memória dos eventos passados, das ditaturas, das injustiças, das violências e traições, são condições de possibilidade para que não se repitam. Esquecer o passado nos condena a repeti-lo. Nesse aspecto a perdão rompe com o ciclo de violência e a memória possibilita que o ciclo da violência não tenha um novo começo. Como conclusão o Papa diz: “O perdão é precisamente o que permite buscar a justiça sem cair no círculo vicioso da vingança, nem na justiça do esquecimento” (FT 252).


A guerra e a pena de morte:

Para a fraternidade universal e amizade social, duas medidas devem ser evitadas por apresentarem soluções falsas que pioram mais ainda o problema que pretendem solucionar: a guerra e a pena de morte. Sobre a Guerra o Papa não deixa dúvida quanto ao seu lado maléfico e a sua falta de legitimidade moral, mesmo que alguns pretendam insistir na “guerra justa”. Diz o Papa: “A guerra é a negação de todos os direitos e uma agressão dramática ao meio ambiente. Se queremos um desenvolvimento humano integral autêntico para todos, é preciso continuar incansavelmente no esforço de evitar a guerra entre as nações e os povos” (FT 257). Para tanto, o Papa aposta nas normas jurídicas internacionais como a Carta das Nações Unidas que prevê e aposta nos mediadores que negociam para evitar o mal que sempre será injustificável moralmente. Sempre que se fala da guerra se recoloca a questão da guerra justa e que, portanto, haveria ocasiões em que a guerra se impõe e teria legitimidade moral e religiosa. Sobre isso o Papa Francisco avança em relação ao Catecismo da Igreja Católica que fala da Legítima defesa por meio da forma militar. Para o Papa Francisco o poder destrutivo das armas atualmente disponíveis, aliado às recorrentes justificativas infundadas que tem sido dadas para as guerras, sempre escondendo interesses econômicos de fundo e as inomináveis maldades cometidas aos civis e a vítimas inocentes, o faz dizer que “já não podemos pensar na guerra como solução, porque provavelmente os riscos sempre serão superiores à hipotética utilidade a ela atribuída. Diante dessa realidade, hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais amadurecidos em outros séculos para falar de uma possível ‘guerra justa’. Nunca mais a guerra”(FT 258). É uma posição clara, objetiva e, diria, corajosamente revolucionária. Quanto a pena de morte o Papa segue a mesma lógica. Se não é a favor de eliminar outros povos e nações, através da guerra, também não é a favor de eliminar indivíduos através da pena capital. Papa Francisco faz, nesse particular, uma revisitação dos principais argumentos contra a pena de morte, iniciando no Novo Testamento, passando pelos teólogos da tradição e chegando ao Papa São João Paulo II que diz que não há razões de ordem moral e penal para a pena capital. As razões vão desde a dignidade humana que nunca perde seu valor e Deus é seu fiador, até os erros judiciais e uso da pena capital para fins políticos totalitários etc. Essa postura não significa que se faça injustiças às vítimas que sofreram nas mãos de um assassino, estuprador ou seja qual for a violência cometida. Não ser a favor da pena capital não significa abrir mão da punição e dos mecanismos legais à disposição da justiça para que se faça justiça, sem que esta escorregue para vingança desmesurada.


A chance do recomeço não deve ser negada a ninguém desde que a verdade prevaleça e o perdão não seja um álibi para cometer novas injustiças. Para tanto, é necessária uma memória viva das vítimas e mecanismos de punição restaurativos que preservem a dignidade humana sem a qual abrir-se-á portas para a barbárie.


 
 
 

2 comentários


Gilmar Zampieri
Gilmar Zampieri
04 de abr. de 2021

Obrigado querido amigo! O Papa é um alento para a alma e nos engrandece! Abraços fraternos

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sainvil.willio
sainvil.willio
04 de abr. de 2021

Boa noite Fr. Gilmar, como você está? Depois ter lido o seu texto de sétimo capítulo de Fratelli Tutti: Caminhos de um novo encontro. Eu descobri uma reflexão muito profunda da sua parte. Através desta reflexão, o Papa Francisco em busca de unidade sem distinção. O grande desafio é que esquecemos se somos diferentes. O seu texto deveria ser divulgado para conscientizar a cada pessoa para poder viver irmãos e irmãs. Mas como você disse "É difícil retornar-se ao estágio interior. Muito obrigado. Que a sua mensagem chega aos ouvidos de um de nós. Eu gostei muito o seu texto.

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