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FRATELLI TUTTI: UMA INTRODUÇÃO

Atualizado: 4 de nov. de 2020

O Papa Francisco é uma luz na escuridão e por onde passa deixa um rastro de esperança. Esperança poderia ser seu nome, mas ele assumiu o nome de Francisco, o que dá no mesmo, e Francisco é mais do que um nome, é um programa de pontificado e está sendo cumprido com rigor e coerência em seus três pontos principais: a) uma Igreja pobre e para os pobres; b) um claro compromisso com o meio ambiente; 3) um desejo de fraternidade, justiça e paz.


Da Igreja, o Papa Francisco tratou na exortação Evangelli Gaudium. Do meio ambiente e do cuidado da casa comum, se debruçou na encíclica Laudato si’. Agora, com a Fratelli Tutti, o tema é a fraternidade e a paz. A trilogia se fecha. A unidade transcendental encontra-se no Deus da criação, em Jesus, nos temas abordados e todos interconectados e, sobretudo, na figura pessoal do Papa que encarnou, de forma exemplar, o espírito e a mística franciscana.


A encíclica Fratelli Tutti é para ser lida, meditada e discutida. Não dá para ser católico e desconhecer o Ensino Social da Igreja e essa encíclica é, ao mesmo tempo, uma síntese e uma introdução a esse ensinamento.


É uma síntese pessoal do Papa Francisco, é verdade, mas em sintonia com os predecessores e com as conferências de bispos do mundo inteiro. E é uma introdução porque o Ensino Social da Igreja tem uma longa história e marcado por documentos célebres que vão da Rerum Novarum (1891), do Papa Leão XIII, passando por Quadragesimo Ano (1931), Divini Redemptoris (1937), Non Abbiamo Bisogno (1937), Mit brenender Sorge (1937), de Pio XI e Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963) do Papa João XXIII. O Concílio Vaticano II formulou uma síntese e abriu caminhos novos com a Constituição Pastoral Gaudium et Spes (1965). Depois do Vaticano II os Papas continuaram o caminho da defesa da dignidade humana, do trabalho, da justiça e da paz em vários momentos. De Paulo VI destaca-se Populorum Progressio (1967) e o Sínodo dos Bispos: A justiça no mundo (1967); De João Paulo II destaca-se Loborem Exercens (1981), Sollicitudo Rei Socialis (1987) e Centesimus Annus (1991). Papa Bento XVI colaborou com Deus Caritas Est (2005) e o Papa Francisco nos premiou com uma belíssima encíclica sobre a casa comum, intitulada, Laudato Si’ (2015).


Já há boas intervenções e interpretações pontuais da encíclica e o meu intuito não é fazer um corte e aprofundar um ou outro ponto, mas intento oferecer ao leitor um guia de leitura da Fratelli Tutti, em dez artigos. Neste primeiro artigo faço uma aproximação aérea, tal qual um avião, antes do pouso. Pousaremos em cada um dos oito capítulos da Encíclica, ao seu tempo, nos próximos artigos. Por ora farei um sobrevoo, destacando cinco elementos que são como que localizadores ou sinalizadores de referência que preparam o pouso suave e seguro.


1. O título e tema. Em todas as encíclicas as primeiras palavras do texto figuram como título e por isso são muito bem pensadas. Poderíamos imaginar o contrário também, isto é, primeiro se pensa o título e depois se escreve a primeira frase do documento. Seja como for, o certo é que o título é como uma fotografia ou o nome de alguém, lhe dá identidade. O título é, ao mesmo tempo, uma síntese e uma chave de leitura. No caso da encíclica Fratelli Tutti, assim como foi na Laudato Si’, o título é de inspiração franciscana. Se a expressão Laudato Si’, louvado sejas, teve origem no Cântico das Criaturas, Fratelli Tutti tem sua origem textual nas Admoetações, um escrito de São Francisco, onde se lê: “Irmãos todos, prestemos atenção ao Bom Pastor que, para salvar suas ovelhas, suportou a paixão da cruz”(FF, VI Adm). Fratelli Tutti, portanto, soa algo como: “Somos todos irmãos”. O subtítulo da Encíclica amplia e, ao mesmo tempo, esclarece o título introduzindo o tema de fundo da Encíclica, a saber, a Fraternidade e a Amizade Social. O alcance do título e a proposta temática são amplos o suficiente para indicar que ética, religião, filosofia, teologia, sociologia, economia e política serão os campos de movimentação da abordagem da Encíclica. Afinal, uma encíclica social, tanto para o diagnóstico da realidade, quanto para um bom julgamento e indicações de pistas de ação, só pode ser lúcida e eficaz se for interdisciplinar, mobilizando tanto o intelecto quanto o sentimento, em vista da práxis humanizadora e civilizatória. É o caso da Fratelli Tutti, que nos convoca a superarmos o espírito do “eu” para entrarmos na dinâmica do “nós” e do “comum”.


2. 0bjetivo. Enquanto o propósito da Encíclica Laudato Si’ foi contribuir para o debate em torno do cuidado da casa comum e dos pobres, superando a crise socioambiental, explicitando a colaboração que a fé pode oferecer para “cuidar da natureza e dos irmãos e irmãs mais frágeis” (LS 64), o propósito da Fratelli Tutti é expressamente manifesto pelo Papa quando diz que a encíclica não quer “resumir a doutrina sobre o amor fraterno”, mas se concentrar na “dimensão universal” e naquilo que o amor tem de “abertura a todos” na construção da fraternidade e a amizade social. Para tanto, diz o Papa: “entrego esta Encíclica social como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras”(FT 6). Não se limitar a palavras supõe passar da cabeça para o coração e do coração para a ação.


3. Os inspiradores. Francisco de Assis foi o inspirador principal da Laudato Si’, por tudo o que ele representa à causa ecológica e à causa dos pobres. O Papa Francisco manifestou essa inspiração, de uma forma que não poderia ser mais acertada, quando diz que “Francisco é o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade”(LS 10). Outra figura exemplar e inspiradora da Laudato Si’ foi o Patriarca Bartolomeu I, da Igreja Ortodoxa, exemplar defensor das causas ecológicas. Agora, na Fratelli Tutti, a inspiração do Papa continua sendo Francisco de Assis, afinal, o que amava a natureza e os animais, amava com igual intensidade os humanos e a todos tratava como irmãos. Diz o Papa: “Esse Santo do amor fraterno, da simplicidade e da alegria, que me inspirou a escrever a Encíclica Laudato Si’, volta a inspirar-me para dedicar esta nova Encíclica à Fraternidade e à amizade social”. (FT 2). Contudo, a novidade recai sobre uma figura pouco conhecida do ocidente cristão, que é o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb. O Para Francisco revela que foi de uma conversa que teve em Abu Dhabi, com o Grande Imã, que surgiu a ideia desta nova Encíclica que reúne e aprofunda os grandes temas já expostos num documento, fruto do encontro e da conversa, assinado em conjunto com o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, intitulado: Sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum. A inspiração é, pois, dupla, o que mantem a coerência com a já dupla inspiração da Laudato Si’, como referimos. Além dessa dupla inspiração, o Papa faz uma menção especial a três figuras emblemáticas, não católicas, que orbitam num círculo de grandeza muito próximo de Francisco de Assis e de Jesus Cristo: Martin Luther King, Desmond Tutu, Mahatma Mohandas Gandhi.


4. Os destinatários. A Fratelli Tutti tem sido chamada de “Encíclica laica”. Parece exagero, mas a qualificação não deixa te ter seu momento de verdade. De fato, os interlocutores e destinatários não são somente os cristãos católicos e crentes de outras religiões. Aliás, isso tem sido uma prática recorrente das Encíclicas que não tratam especificamente da vida interna e da evangelização da Igreja, mas tratam de temas e problemas de alcance e interesse universais. João XXIII abriu caminhos nesse aspecto e, na Pacem in Terris (1963), não só se dirige aos bispos, clérigos e fiéis católicos, mas também “a todas as pessoas de boa vontade”. O Concílio Vaticano II consagra essa prática na Constituição Pastoral Gaudium et Spes, que trata das esperanças e angústias do homem em tempos modernos, quando diz que “o Concílio Vaticano II não mais hesita em dirigir a palavra somente aos filhos da igreja e a todos os que invocam o nome de Cristo, mas a todos os homens” (GS, 202). O Papa Francisco segue as pegadas de João XXXIII e do Concílio Vaticano II e já na Laudato Si’ tinha se dirigido a todos os homens de boa vontade quando diz: “nesta encíclica, pretendo especialmente entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum”(LS, 3). Ele assim se expressou pois na Evangelli Gaudium tinha se dirigido especificamente aos fiéis católicos. Agora, na Fratelli Tutti, novamente, o Papa Francisco reitera o seu desejo de se dirigir para além dos membros internos da Igreja. Diz o Papa, sobre os destinatários Encíclica: “Embora a tenha escrito a partir das minhas convicções cristãs, que me animam e nutrem, procurei fazê-lo de tal maneira que a reflexão se abra ao diálogo com todas as pessoas de boa vontade” (FT, 6). Então, poderíamos dizer que a Fratelli Tutti convoca a humanidade inteira a se pensar como “irmãos”. Talvez aconteça o que já aconteceu com a Laudato Si’, que foi muito bem recebida pelos cientistas, ambientalistas e pessoas de boa vontade, preocupados com os destinos da casa comum, mas, ainda pouco lida, debatida e posta em prática no interior da Igreja.


5. Método e estrutura. O Papa é latino-americano e aqui a teologia e a organização pastoral têm consagrado um método que tem se mostrado crítico, eficaz e criativo. Trata-se do método ver, julgar e agir. Não é só ver, porque, então, se reduziria à sociologia. Não é só julgar, pois, decairia na doutrina, pura e simples. Não é só agir, senão seria experimentalismo cego. É ver, julgar e agir. O ver processa uma análise crítica da realidade a partir de um ponto de vista e de uma perspectiva que já antecipa o julgar e o agir na ótica cristã. O julgar é o momento de iluminação bíblica que fundamenta tanto a análise da realidade quanto as consequentes linhas de ação transformadoras da realidade. Esse é o método da Encíclica e o Papa o conduz com maestria, atravessando a estrutura da Encíclica, que é composta de uma introdução, oito capítulos e duas orações finais. O primeiro capítulo é uma análise da realidade que desafia e resiste à prática da fraternidade, a amizade social e a paz. O segundo capítulo é um resgate e interpretação da parábola do bom samaritano, narrativa magistralmente aplicada à realidade, que ilumina toda a Encíclica, servindo de referência teórica e prática para pensar e agir desde o horizonte bíblico. Do capítulo III ao VIII, o método torna-se circular em que o ver, julgar e agir perpassam os vários temas já consagrados no Ensino Social da Igreja, apontando sempre para a superação do mundo fechado, abrindo caminhos de diálogo para a construção da fraternidade, amizade e paz, sem os quais a dignidade humana não passa de um conceito abstrato.

“Igualdade, liberdade e fraternidade“ era o lema da revolução francesa. O sonho de liberdade e igualdade já são realidade, de alguma forma, nas constituições das sociedades livres e, também, no cotidiano. Contudo, a fraternidade continua um sonho distante e, das três irmãs, a mais frágil. A igualdade é branca, a liberdade é azul e a fraternidade é vermelha. Agora podemos levantar, alegre e esperançosamente, com o Papa, a bandeira vermelha, sem deixar de continuar erguendo a branca e a azul.

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